Meu aprendizado com Kaz Tanahashi

Quem primeiro me apresentou a perspectiva de uma prática profunda da arte foi o professor Norberto Niehbur, grande desenhista e pintor, e também exemplo raro de lucidez e bondade. Acompanhado por ele durante minha adolescência, aprendi, junto com as técnicas artísticas, que o desenho requeria silêncio, solitude, atenção continuadas, observação, paciência, repetição, disciplina… E que esse aprendizado serviria para a vida toda.

Na década seguinte, trabalhei aplicando o desenho à moda e à publicidade, produzindo sob demandas da indústria com foco em vender do jeito mais eficiente possível. Ao fim desse tempo, havia esquecido o sentido que um dia eu vira nas artes visuais. Apenas bem mais tarde, quando já havia tomado contato com o Darma, é que esse interesse começou a voltar. E dessa vez eu queria ser zeloso: como preservar a alegria na relação com a arte? Como praticar além da cultura do entretenimento e do comércio, e do mero fascínio técnico e estético? Como empregar verdadeiramente a prática artística no processo amplo de florescimento humano?

Com essas questões bem vivas descobri o trabalho de Kazuaki Tanahashi, erudito experiente, professor e mestre artista que havia treinado longamente na tradição Zen de cultivo da mente, e ao mesmo tempo se dedicava com grande praticalidade às questões mais urgentes da sociedade e da cultura em nosso tempo – paz, consumo, trabalho, política, biosfera, e mesmo as gerações do futuro. Era uma combinação incomum e preciosa, e eu quis reaprender a prática artística com Sensei Kaz. O contato se deu pouco depois graças ao apoio de inúmeras pessoas da grande sanga, e agora se completam sete anos de uma relação das mais impactantes e transformadoras para mim.

“Para se criar uma sociedade iluminada, é preciso mudar a cultura, e para mudar a cultura, é preciso mudar a arte. E para mudar a arte, é preciso mudar os princípios nos quais ela é baseada.”

—Chögyam Trungpa Rinpoche

Os ensinamentos budistas nos mostram que todos os seres desejam ser felizes e evitar o sofrimento, e que por meio desse referencial podemos avaliar nossas ações e direcioná-las no sentido de diminuir os danos e aumentar os benefícios, de gerar mais equilíbrio e felicidade. Por que não usar esse referencial seguro também na prática artística, expressão humana das mais poderosas?

Quando perguntado se tem algum conselho para os artistas, Sensei Kaz diz que acha importante o engajamento com alguma prática contemplativa ou espiritual. Ou seja, é preciso passar pela descoberta gradual de que as causas da felicidade genuína estão além dos fatores externos e que as motivações mais alegradoras estão além de preferências e visões pessoais, que a vocação a partir da qual qualquer trabalho ou ação no mundo ganha sentido mais profundo é a compaixão. Assim, a questão inicial não é como fazer arte, mas como cultivar o mundo interno. Conseguimos operar a arte de forma profunda e compassiva apenas na medida da nossa motivação. A arte passa, então, a apoiar esse processo, ela vai se tornando ao mesmo tempo um campo de treino e uma das ferramentas com as quais melhoramos nossa vida e a sociedade.

Pacificando, enriquecendo, provocando e instigando por meio de inúmeras formas, a arte tem potencial infinito de atrair e mobilizar as pessoas para qualquer direção. Ela pode convidar para perspectivas limitantes, pode nos fazer perder tempo, mas também pode nos inspirar para visões positivas amplas, para além do que nos é dado dentro da normose cotidiana. Na medida em que os artistas puderem compreender a cultura e a realidade, e que tiverem compaixão e as habilidades técnicas, estéticas e de linguagem, eles se tornarão agentes muito hábeis, capazes de agir criativamente para intervir e oferecer ao mundo o que lhe for mais necessário.

Abertura da exposição “Um Pincel” na Reitoria da UFRGS, Porto Alegre, RS | Zé Paiva, 2018

“De acordo com o ponto de vista budista, a intenção do artista é compaixão.”

—Thinley Norbu Rinpoche

Naturalmente, podemos entender que esse é um princípio importante para todos. E também, especialmente, que artistas não são apenas as pessoas que vivem de arte, que o fazem profissionalmente ou tiveram treinamento formal. Todos temos sensibilidades e infinita capacidade criativa de visualizar o improvável e dar formas ao irrealizado. Essa é uma qualidade natural da mente, é o que já fazemos, das coisas mais simples e cotidianas às mais complexas e grandiosas. Nas tarefas do dia a dia, nas relações, nas ciências, na educação, no trabalho social, cada um pode cultivar o princípio da compaixão e descobrir a felicidade que vem de proteger e transformar a vida.

Sinto que isso é um pouco do que aprendo ao conviver com Sensei Kaz. Há sempre silêncio ao cozinhar, lavar roupas, limpar, arrumar, fazer as refeições, ao trabalhar com papéis, telas, tintas e pincéis, ao sentar, e, por meio do silêncio, as visões que de alguma forma se oferecem.